Poesia, amor e bacalhau: Os bolinhos e os 100 anos de Mário

Mário e Mireille em 1950, após um café pelas ruas de Buenos Aires

Em 14 de junho de 1912, a jovem República brasileira havia recém cumprido pouco mais que 20 anos de existência; não havia televisão; o rádio e o telefone eram tecnologias de ponta; a Semana de Arte Moderna ainda estava longe de acontecer e as ruas do Rio de Janeiro, capital do Brasil, contavam com não mais que cem automóveis circulando.

Nesta época, o termo "aquecimento global" ainda não inventado, o inverno no Rio ainda trazia uma brisa fria, e foi num dia assim, com o sol posicionado na constelação do alegre signo de Gêmeos, que nasceu o primeiro dos quatro filhos de Adalgisa Teixeira dos Santos e Manoel Ferreira dos Santos. O par, um jovem casal de cariocas descendentes de portugueses, vivia em uma chácara no bairro da Tijuca, ainda uma região rural.

Mário Ferreira dos Santos passou a infância ouvindo no rádio as longínquas notícias da Primeira Guerra, conflito do qual o Brasil foi o único país latino-americano a participar, ainda que de forma neutra. Por esta razão, Mário precisou mostrar os documentos, por diversas vezes, a tensas autoridades militares cariocas, ao tomar o bonde para ir à escola.

Mário cumpriu sete anos e, pouco tempo depois, Adalgisa viu-se viúva. Os meninos foram enviados para um internato em Lorena, São Paulo, e só retornaram ao Rio já crescidos. Adalgisa casou-se novamente com um almirante e Mário decidiu estudar Medicina, especializando-se em patologia.

Jovem e galanteador, seu passatempo era memorizar poesias românticas para impressionar as moças. Lia tudo que lhe caía nas mãos e decorava longos versos, muitos dos quais levou na memória por tantas décadas, apenas para fazer corar jovens estudantes. Aprendeu cedo a fazer a barba bem rente, atividade na qual se empenhava todos os dias, com bom humor, a lâmina afiada e o pincel branco de espuma. Mais velho, cultivou um bigode da moda, sempre limpo e aparado, e passava colônias francesas (com o mesmo propósito que tinha quando decorava as poesias).

Encontrava as colônias em lojas da rua Ouvidor ou então nos navios estrangeiros atracados no cais do porto carioca, onde gostava de jantar e fazer compras, encontrando ali artigos importados dos mais diversos. Era um apaixonado pelas boas coisas da vida, entre elas a cozinha, e aprendeu, desde cedo, a identificar na cidade os melhores fornecedores de vinhos, peixes, queijos, pães e frutas.

Já formado, trabalhando em um importante laboratório e professor da universidade federal, Mário, certo dia, ministrava um curso de microbiologia quando uma aluna chamou sua atenção. Única mulher entre tantos homens, Mireille tinha um nome francês, o olhar inteligente e profundo e os modos discretos. Todos os versos, as colônias e os peixes de Mário, a partir de então, foram para ela.

Em 28 de dezembro de 1949, casaram-se, Mário e Mireille, celebrando um amor profundo, de admiração mútua e as mesmas paixões compartilhadas. Passaram a lua de mel em Buenos Aires, viveram juntos em Paris, voltaram ao Rio, cozinharam juntos, convidaram amigos, lotaram estantes de livros que iam desde poesia parnasiana até parapsicologia e metafísica. Neste meio tempo, tiveram também quatro filhos, que lhes deram netos, que lhes deram (até agora) uma bisneta.

Anos entravam e saíam e Mário voltava para casa com uma garrafa de vinho debaixo do braço, um perfume para Mireille ou um agrado para os filhos e um verso na ponta da língua. Sentava-se à mesa, satisfeito, e desferia uma crítica bem humorada aos políticos de então, já que sua língua era ferina e a leitura do jornal, uma atividade obrigatória diária.

Mário e Mirelle inauguraram a tradição de celebrar o Natal e a Páscoa como reis, enchendo a casa de presentes, amigos e comidas. Nestas ocasiões, uma singeleza que ele sempre fazia questão de preparar sozinho era o bolinho de bacalhau, receita herdada da origem portuguesa da mãe. Podiam trazer o caviar que fosse, o whisky mais fino e o queijo mais caro, mas se tivesse de escolher, Mário provavelmente escolheria estes bolinhos. Para tal, ele procurava o melhor azeite português e o bacalhau mais gordo do Porto ou da Noruega, que começava a preparar de véspera, deixando o peixe na água para tirar o sal.

Hoje, este homem que ouviu notícias de duas guerras mundiais e preparou tantos bolinhos quantos Natais se passaram completa cem anos. Beijamos seu rosto, que continua sempre bem barbeado e cheiroso, e ele apenas nos olha com os mesmos olhos castanhos, ingênuos e indagadores de antes, sorrindo, sem falar. Provavelmente estará pensando nos versos, lembrando-se de Mireille e sentindo-se grato pela vida.


O bolinho de bacalhau de Mário Ferreira dos Santos:

1 kg de bacalhau dessalgado
1 cebola bem picada
2 tomates cortados em cubinhos bem pequenos
4 ovos - separe as gemas e bata as claras em neve
600 grs. de batata cozida e espremida
Salsa e sal a gosto
Azeite, o quanto baste

Deite um fio generoso de azeite ao fundo de uma caçarola e acomode ali, em camadas, as lascas do bacalhau, salpicadas com a cebola e o tomate, sempre utilizando fios de azeite entre elas. Monte diversas camadas desta combinação, como se fosse uma bacalhoada. Uma vez cozido, desfie o bacalhau e misture-o com as batatas, a salsa, as gemas e, por último as claras em neve, homogeneizando a mistura. Molde os bolinhos com o auxílio de duas colheres de sopa e passe ligeiramente na farinha de trigo, antes de fritar. Frite em azeite bem quente e escorra o excesso em papel toalha.

Comentários

  1. amei, Góia! água nos olhos pela homenagem ao avô e na boca pela delícia da receita!

    béri

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  2. Grória! Que lindo! Estou apaixonada pelo Mário...mas entendo que ele sempre será de Mireille...

    Bj!

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  3. Não da pra falar...os olhos estão cheios de lagrimas com o seu texto e o coração lotado de boas lembranças desse pai querido! Se ele pudesse tenho certeza que iria se encher de emoção e dizer:
    _ Nasceste em setembro e veio uma fada linda para benzê-la e disse sorrindo se bem me lembro, serás tão linda como uma estrela!
    Obrigada querida.
    Um beijo da mã

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  4. Lindo texto, Gloria!!!
    Beijos da Ingrid!!

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  5. Gloria.... vc sabe de algum lugar em BH que venda BONS bolinhos de bacalhau?

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  6. sensacional o blog! seguindo já!!

    http://deliciasdaisa.blogspot.com.br/

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  7. Ingrid, sobre os bolinhos de bacalhau, sei que ó Baltazar tem uns bem feitinhos. Isadora, bem vinda! :)

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  8. Oi Glória, que lindo seu texto!
    Adorei a receitinha, vou testar!
    Bjooo

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