Mais um texto sobre comida (mas não só)

 O valor de algumas coisas depende de onde se vê...


Há três anos, na hora do almoço, eu seguia sempre o mesmo ritual: me levantava esfomeada da estação de trabalho e caminhava até o centro de convivência da Cidade Administrativa de Belo Horizonte. Lá, escolhia um dos restaurantes self-service e torcia para que a comida tivesse sido preparada minimamente bem, para que a minha pausa para comer fosse, pelo menos, agradável. Após o expediente e a selvageria do trânsito, chegava em casa esgotada e elaborava qualquer coisa rapidamente: uma salada, um sanduíche, um prato de pasta simples ou uma sopa congelada que havia deixado pronta antes. Em dias de chutar o balde, pizza.

Minha rotina alimentar foi assim por muitos anos e meu amor pelas panelas só se manifestava em algum sábado ou domingo em que eu me sentia inspirada. Porém, o modo como eu vivia mudou drasticamente após o dia 1º de janeiro de 2015. Nessa data, em algum ponto do Atlântico, dentro de um avião que seguia para a Europa com um bilhete só de ida, escrevi em um caderno apoiado na mesinha dobrável:

“Acostumei-me a viver em um ritmo nervoso. No aeroporto, senti a pressa, a impaciência, a ansiedade que me consumiam pelo atraso do voo, por um bebê que chorava, por uma senhora que caminhava com seus passinhos calmos à minha frente. Transformei-me no próprio ritmo que vivi até hoje: irrequieto, agitado, alinhado à velocidade do trabalho e da tecnologia, e não das pessoas e das coisas. Agora estou me mudando e devo mudar. Não posso levar nesta viagem a pessoa que fui até agora. Essa pessoa não suportará o desconhecido, o não planejado, a mudança total e o imprevisto.”

De fato, precisei mudar muito para desfrutar da experiência, para deixar de me assustar com um mapa estranho, com uma língua desconhecida, com a ausência de controle de certas situações, com a sensação de ser uma completa estranha. Posso dizer que essas e tantas outras transformações que atravessei tiveram um impacto em todos os aspectos da minha vida. Nesse novo compasso, é claro que até minha relação com os alimentos, que outrora parecia ser algo tão secundário e desimportante, mudou radicalmente.

É curioso como o valor de algumas coisas depende de onde se vê. Hoje, preparo minha comida quase todos os dias, o que, na minha “vida antiga”, poderia me parecer ora uma tortura, ora uma utopia. E não estou falando em pizza... Os atos de escolher os alimentos, pensar antecipadamente em algum prato mais elaborado e comer quase tudo feito em casa se tornaram terapêuticos. Desafio minha criatividade aprendendo alguma coisa nova, um novo sabor ou um alimento desconhecido, mesmo quando algum prato vai parar no lixo (faz parte da trajetória, e com frequência). E é claro, como muito melhor.

Nesses três anos, entendi por que a gastronomia é realmente uma cultura, pois a forma de cozinhar de alguém é um resultado de práticas aprendidas, de um conhecimento que vamos absorvendo de todos os lados e acumulando. Por exemplo, reduzi drasticamente meu consumo de carne após observar, vivendo com duas vegetarianas, as infinitas possibilidades de grãos, sementes e vegetais que eu nem sabia que existiam. Passei a usar o estranhamento a meu favor: desafio-me a comprar alimentos que não conheço e aprendo muito perguntando para os vendedores como eles o preparam - na Itália, esse é um assunto sobre o qual todos têm algo a dizer. Com meu companheiro, com quem divido o fogão, desenvolvi o olfato para pães e queijos e aprendi a ter paciência usando o fogo baixo quando  necessário. E quase sempre é necessário. E sim, a mesma paciência que eu não tinha...

Finalmente, assimilei uma antiga lição que os supermercados nos fazem ignorar: a de que cada época do ano e cada lugar oferecem seus alimentos característicos e você percebe a diferença quando eles são frescos, naturais e produzidos perto de casa. Aqui, nas grandes redes, é possível encontrar o grão-de-bico produzido no México, a lima (nosso limão verdinho) do Brasil e a laranja fora de época, da África do Sul. É tentador: às vezes pago 2,99 euros em UM abacate equatoriano, sentindo-me absolutamente culpada, quando estou morrendo de vontade de fazer guacamole. Porém, esperar pela laranja local, imperfeita e um pouco torta, colhida no inverno nos campos próximos de onde vivo vale a pena: ela não é redonda, bonita, de cor uniforme como aquela africana, mas cheia de um suco e de um sabor que são únicos. E na sua época certa. No seu ritmo.

Agora, no outono, as estradas menores estão cheias de caminhonetes paradas, circundadas por um tapete de abóboras à venda em toda parte. Tudo adquire uma coloração entre o amarelo e o marrom e a cor das abóboras se harmoniza com a paisagem. Sua fragrância doce e aveludada perfuma  confeitarias e casas de vizinhos, que parecem cozinhar magnificamente bem pelos cheiros que sinto. É a época das abóboras e das castanhas cozidas fumegantes nas ruas, das magníficas trufas e outros cogumelos da montanhas, da couve-flor e do brócolis, dos feijões e das nozes.

Recentemente, fui ao negócio do verdureiro, um senhor simpático que às vezes me ensina receitas e coloca na minha sacola um ramo de salsinha fresca. Ele me ofereceu um enorme pedaço de abóbora, uma das primeiras da estação. Trouxe-o para casa e a verdura se transformou, ao longo dos dias, em risoto de abóbora com queijo pecorino defumado, quinoa com abóbora e abobrinha e, por fim, muffins de abóbora com nozes e canela sem açúcar, destino do último pedaço.

Devo dizer que cheguei a esses bolinhos lembrando-me de lições preciosas da minha mãe, que faz bolos como ninguém: “a cozinha é uma química”, dizia, “atente para o equilíbrio entre o seco e o úmido”, “use a clara do ovo batida se quiser um bolo fofinho, mesmo quando a receita não diz”, “misture tudo delicadamente de baixo para cima” e “use o famoso palitinho para ver se está cozido…” E: “tenha paciência, não abra o forno antes da hora. Tem que esperar”. Tá certo, mãe. Estou tentando.


Muffins de abóbora e nozes sem açúcar

Ingredientes:

200 gr, de abóbora cortada em cubinhos e cozida no vapor
250 gr. de farinha (fiz metade integral, metade branca)
1 colher de chá de canela
1 colher chá de fermento em pó
50 ml de leite (usei leite de soja)
30 gr. de manteiga
1 ovo
1 pitada de noz-moscada
Nozes picadas a gosto
3 ou 4 colheres de mel
Usei um pouco de adoçante à base de stevia também, em pó, 1 colherzinha

Preaqueça o forno a cerca de 170 graus. Deixe a abóbora cozida em uma peneira para escorrer o líquido que possa ter se acumulado no cozimento. Reúna todos os ingredientes secos, exceto as nozes, em um recipiente e reserve. Bata a clara do ovo em neve. Em outro recipiente, bata a gema, a manteiga ligeiramente derretida e o mel até criar um creme fofinho e reserve. Em um mixer ou liquidificador, bata a abóbora cozida e o creme feito com a gema do ovo até virar um composto homogêneo. Depois, incorpore com uma espátula esse creme à clara em neve (delicadamente, debaixo para cima) e tudo isso, também delicadamente, aos ingredientes secos passados em uma peneira. Acrescente as nozes picadas à massa. Preencha forminhas de muffin e coloque para assar por 15-20 minutos.

Nota: Vi que algumas pessoas colocam pedacinhos de chocolate na massa. Acho que vale a pena tentar, pois o sabor desse muffin é muito delicado e um pouco de doce "a mais" vai bem.





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