Pequenas mentiras em um conto carioca

Mentirinhas, biscoitinhos tímidos, sem recheios nem confeitos - deliciosos


Quando o avião passava em rasante pela Baía de Guanabara, com seus barcos reluzentes sob o forte sol carioca, ela sempre sentia aquele frio na barriga. A emoção era um misto de deslumbramento com a paisagem que nunca se cansava de ver e de um temor de que a pista de pouso jamais chegasse, e de que talvez fizessem uma aterrissagem nas águas de azul profundo ou, pior, que tudo terminasse em um desastre contra as pedras.

Mas o temor jamais se realizava e a aeronave sempre descia com razoável tranquilidade no aeroporto Santos Dumont, sacolejando levemente ao se aproximar da área de desembarque, com o calor e a umidade do Rio já se fazendo sentir na primeira lufada de ar marinho que se impunha quando a porta da aeronave era finalmente aberta.

Mochila nas costas, casaco amarrado na cintura, ela e sua mãe tomavam o primeiro taxi em direção ao bairro de Botafogo. Como os cachos de seus cabelos se desfaziam rapidamente naquele abafamento, automaticamente puxava um elástico do bolso e fazia um coque meio desajeitado, dentro do carro mesmo.

Retornar ao Rio era sempre como fazer uma viagem ao passado. O aeroporto, a vista da praia do Flamengo no caminho, a feira na rua Voluntários da Pátria aos sábados, os comentários dos taxistas sobre o calor e o trânsito, os tacos soltos no piso do antigo apartamento e os móveis centenários – tudo permanecia muito similar ao que havia sido da outra vez. Até o vestido azul de petit pois da avó, que parecia guardado para ocasiões especiais, como a visita da neta, estava sempre presente, envolvendo o colo farto e acolhedor com cheiro de talco.

Já instalada, dentro de um dos quartos, enquanto os adultos faziam a sesta após o almoço, a menina com seu coque passava horas a olhar os livros nas estantes - alguns há tantos anos no mesmo lugar, que já não se sabia sequer se se prestavam a ler – e chegou a decorar alguns títulos e mesmo suas sequências.

De uma biografia amarelada de Getúlio Vargas ao lado da obra completa de Eça de Queiroz, de livros sobre hipnose posicionados junto a séries completas de culinária do Círculo do Livro, as estantes do avô guardavam, mais do que páginas empoeiradas, mistérios de uma vida muito anterior à da menina, que provavam que, ao contrário do que parecia, o tempo passava sim, mas em seu próprio compasso. Sozinha no quarto dos livros, ela flertava fascinada com estes antigos segredos.

Às vezes, o avô retirava uma destas preciosidades da estante, como quem retira uma joia de seu cofre, cuidadosamente, e oferecia à menina, antecipando trechos decorados de forma a convidá-la à leitura. 

Sentada no chão de pernas cruzadas sob o livro, ela ocasionalmente mirava a parede oposta à da estante, onde um quadro pintado por sua própria mãe fornecia mais pistas daqueles tempos antigos. A ampliação a óleo de uma imagem originalmente fotográfica revelava um dia de sol na velha casa de campo da família. Na pintura, uma cerca branca entreaberta instigava a curiosidade da menina, que lamentava não poder ver além das janelas e da porta solenemente encerradas.

Em sua contemplação, ela imaginava o interior escuro da residência de veraneio que jamais viria a conhecer: certamente, haveria de ter uma grande lareira na sala, uma cozinha branca com panelas de cobre, janelões voltados para um quintal de árvores centenárias, sofás e tapetes imensos de grossos tecidos e um corredor comprido que levava aos quartos, cada um deles uma caixa de segredos bem guardada por portas duplas.

As histórias que ouvira sobre a casa da serra não podiam ser mais fascinantes, com crianças que subiam em árvores e colhiam jabuticabas no pé, correrias em fuga por cima do telhado, fantasmas de escravos que arrastavam lamúrias e grilhões, animais misteriosos que apareciam em locais improváveis e toda a sorte de contos fantásticos.

Ao final da tarde, porém, a menina saía de seus devaneios quando a avó, em seu vestido de bolinhas, aparecia procurando por seu “Tico-tico” – era assim que chamava a neta – para o café. A mesa posta se estendia interminável, farta de bolos cobertos de açúcar quebradiço, casadinhos de doce de leite, pães franceses fumegantes, além de queijos e manteigas que, por pouco, não sucumbiam ao calor da cidade. Em um pote de vidro, no canto da mesa, quase como que esquecidos, ficavam uns biscoitinhos tímidos, sem mais ingredientes que farinha, ovos e açúcar, sem recheios nem confeitos. Em sua simplicidade, porém, eram os favoritos da menina, e a avó, que o sabia, sorria discretamente ao ver a neta avançar sobre o pote sem cerimônias. Cerimônia, esta era uma palavra que aprendera com a avó. Mentirinhas, assim eram chamados os biscoitos.

Tantas foram as aterrissagens no aeroporto à beira-mar quanto os tacos soltos da sala que, mesmo depois de consertados, tornaram a soltar. Alguns móveis foram trocados de lugar em algum momento, para dar espaço a cadeiras de rodas e a umas poucas modernidades que forçaram sua entrada naquela morada.

Os livros e a pintura a óleo da casa da serra ganharam uma luz amarelada e o vestidinho de petit pois se aposentou em um canto da gaveta, à medida que os avós também cumpriram suas respectivas missões, adentrando novamente um estágio que a menina ainda não conheceu, cheio de novos mistérios.

As mentirinhas, porém, são encontradas a cada esquina do bairro de Botafogo, reproduzidas em fornadas indiferentes em grande escala e vendidas a preços pequenininhos, porque ninguém se incomoda com biscoitos sem recheio nem cobertura, mas ainda há quem os compre, felizmente. E às vezes, o ato de abrir um simples pacotinho destes biscoitos e senti-los derretendo lentamente entre a língua e o céu da boca tem o poder de transportar a menina imediatamente ao antigo apartamento, ao colo açucarado da avó e às paredes cheias de livros e memórias.

Receita de Mentirinhas

Ingredientes:

- 3 ovos
- 3 colheres (de sopa) de açúcar refinado
- 3 colheres (de sopa) de farinha de trigo

Como fazer:

Unte um tabuleiro com manteiga e farinha e reserve. Bata as claras em neve, junte as gemas e bata novamente. Desligue a batedeira, junte o açúcar, a farinha e misture ligeiramente. Com uma colher de chá ou um saco de confeiteiro, coloque a massa em pequenas gotas do tamanho de uma moeda no tabuleiro. Leve ao forno 180 graus até os biscoitinhos dourarem. Deixe esfriar antes de colocar em um pote hermético.

Comentários

  1. Esse é um dos meu prediletos, assim como seus textos que me fazem voltar no tempo e ir lá para Botafogo ... viajar! Continue contando suas estórias pois sempre haverá um leitor(a)esperando por elas. Bj da mã

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  2. Ao mergulharmos nas reminiscências da infância, sempre emergimos com alguns tesouros preciosos. Seu texto é um exemplo. Beijos!

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  3. Olá,

    Feliz ano novo e parabéns pelo seu blog!

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