Minhas memórias de Ivone (e uma boa batedeira)

Algumas memórias são como o aroma de um bolo de chocolate
- enchem a casa de tempos em tempos

De vez em quando, algumas pessoas passam por este mundo e, ainda que não as conheçamos, deixam a sensação de que são muito próximas de nós. Assim me sinto com relação à minha bisavó Neném, que morreu quando eu era um bebê - famosa pelo grande legado de boas receitas que deixou - ou com meu avô Gleno, com o qual convivi apenas nos meus cinco primeiros anos de vida - renomado advogado e conhecido por seu jeito enérgico e perspicaz. Ou mesmo com meu bisavô Galba de Paiva, jornalista e escritor, que morreu de forma trágica porque sua alma de poeta não conseguiu conviver com as vicissitudes deste mundo. 

Eles se foram cedo para mim, mas suas histórias, seus escritos e suas maneiras permanecem tão evidentes e marcados em outras pessoas e relatos, que é como se ainda existissem, só estivessem num país distante por enquanto. E é assim que me sinto também com relação à Dona Ivone, que é provavelmente como eu a chamaria se a tivesse conhecido. Mas conheci seu filho, anos depois da sua partida.

A presença dessa pequenina e forte mulher morena - cabelos curtos, calças retas e sorriso franco na maioria das fotografias que conheço - ainda se faz presente em bonitas e delicadas lições apreendidas por seu filho único: na maneira impecável como ele fala e escreve, em suas boas maneiras à mesa, em seu apreço por acaloradas discussões e boas leituras, na importância que dá tanto à cultura e à inteligência quanto aos sentimentos e percepções das pessoas, dentre tantos outros aprendizados que ele sabe melhor do que eu.

Ouvi dizer que ela tinha um espírito sagaz, ouvia e ensinava português, literatura e outras lições de vida com atenção e sem preconceitos, com uma mente à frente de seu tempo. Ela certamente tinha em si o poder suave de muitas mulheres que, independentemente do contexto ou de quem possa tentar impedi-las, conduzem sua vida conforme acham que devem.

Afinal, ela teve coragem e força suficientes para aceitar grandes empreendimentos, como o cuidado de uma irmã 100% dependente, portadora de deficiência, e um novo emprego em Brasília em plenos anos 80, longe da família, recém-casada e com um filho pequeno, naquela distância onde ainda ficava o Planalto Central onde poucos aviões pousavam por dia.

Sei também que Ivone era espirituosa e, de vez em quando, soltava frases de efeito emprestadas de sua mãe. "Tal político é mais inútil que teta em homem", comentava sobre as notícias diante da TV. Devia ser uma pessoa daquelas com as quais as horas passam muito mais rápido. 

Sua cultura literária era notória e muitas preciosidades da língua portuguesa que ela colecionava superaram a sua existência. Ela chegou, por um tempo, a se corresponder com Carlos Drummond de Andrade, um de seus autores favoritos, que lhe enviou um exemplar de "As impurezas do branco" com uma bonita dedicatória. Em um cartão de Natal de 1981, Drummond presenteou sua família com escritos inéditos que diziam:

"Fazer de areia, terra e água uma canção.
Depois, fazer de vento a flauta que há de transmitir essa canção.
Por fim, tecer de sopro a boca e os dedos que a flauta animarão.
E a flauta, sem nada mais que puro som, envolverá o sonho desta vida
para todo o sempre, na amplidão."

Ivone conhecia suficientemente bem o código que o escritor mineiro utilizava para identificar um novo poema: "O 'f' e o ponto final são vermelhos, feitos à mão também", observou ela, com sua própria letra, ao final do texto.

Mesmo sem saber, Drummond parecia adivinhar, com estes versos, um dom que Ivone revelava apenas aos mais íntimos: a música. Ela tinha uma belíssima e afinada voz de flauta - e isto posso atestar. Descobri mais este lado de Ivone ao escutar uma gravação em fita cassete que me encheu os olhos d´água. Entre choros, sambinhas e canções populares, Ivone cantava e dedilhava um violão, nas rodas de conversas que enchiam sua casa, enquanto tirava um e outro quitute do forno.

Os dotes culinários, aliás, faziam jus às suas raízes mineiras: entre seu pequeno legado de retratos, livros, correspondências, presentinhos de papel feitos à mão pelo filho e o violão, está ainda um caderno de receitas recheado de delícias, traduzidas na letra redonda e caprichosa de professora. As orientações, muito bem explicadas, têm com frequência fonte e data. Entre as folhas amareladas, alguns recortes antigos de revistas ainda repousam. Seu filho até hoje saliva ao folhear aquelas páginas, evocando na memória o cheiro do pão de queijo, a macarronada com molho de tomate e a carne assada que ela fazia com legumes. Um dia desses ainda faço uma de suas receitas.

Lembro de tudo isso que sei sobre Ivone - e que é suficiente para me fazer sentir tão próxima dela - com frequência, nas conversas com o Beto ou sempre que recorro à sua batedeira. Mesmo antiga e com seu design quadrado típico dos eletrodomésticos dos anos 70 ou 80, a batedeira que já fez muitos pratos de Ivone hoje é insubstituível e faz firmes picos de neve rapidamente, como nenhum destes aparelhos modernos.

E por mais ingênuo e supersticioso que isso possa parecer, quando utilizo a batedeira quadradinha, tenho certeza de que os bolos vão crescer e ficar bonitos em memória de Ivone. Foi assim com este bolo de chocolate, simples, bonito e acolhedor como as memórias que ficaram desta mulher.

Ingredientes:

- 4 gemas
- 4 claras batidas em neve bem firme
- 2 xícaras de açúcar
- 4 colheres de manteiga
- 2 xícaras de farinha de trigo
- 1 xícara de chocolate em pó
- 1 xícara de leite morno
- 1 colher (sobremesa) de fermento

Unte um tabuleiro e reserve. Passe a gemas por uma peneira, junte-as à manteiga e o açúcar. Bata até virar um creme claro e espesso. Passe a farinha e chocolate por uma peneira e misture-os ao creme anteriormente batido e ao leite. Para ficar homogêneo, sugiro bater tudo isto na batedeira.

Acrescente a este creme escuro as claras em neve, incorporando-as delicadamente com uma espátula até ficar fofo e homogêneo. Incorpore o fermento e leve ao forno médio, pré-aquecido, por cerca de 30 a 40 minutos.

Para ver se o bolo está pronto, fure-o com um palitinho de dentes - se o palito sair limpo, o bolo já está no ponto!

Para a cobertura, você pode fazer um brigadeiro mole (leite condensado e uma colher de chocolate em pó com uma pitada de manteiga, cozidos até levantar fervura). Outra opção é derreter, em banho maria, 100 gramas de chocolate em barra e incorporar a uma lata de creme de leite. Fica mais cremoso, mas exige que o bolo seja conservado em geladeira.

Polvilhe com o que quiser: chocolate granulado, amêndoas em lascas e confeitos, por exemplo.

Comentários

  1. Que bacana as fotos do post, Gloria! Adorei! Cheio de tradicao! :)

    Bjinhos da Ingrid

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